quarta-feira, 22 de agosto de 2007

Ela

Sabia tudo o que achavam que devia saber: a hora de acordar, fazer o café, pôr a mesa, despertar o marido... Eram coisas tão cotidianas que, em alguns finais de semana, pegava-se fazendo tudo o que fazia nos dias úteis para só se perceber na redundância dos atos quando ouvia uma reclamação das filhas ou uma reprimenda do esposo. Havia apenas três dias do ano em que sua família fingia serem especiais: seu aniversário, o aniversário de casamento - ambos quase sempre esquecidos pelo seu companheiro - e o dia das mães, sempre brindados com panelas e aventais. Entre o fogão e o tanque havia geladeira, vassouras, espanadores, e nada mais. Ordenava-se manter a casa em ordem e pôr ordem na mesa. Esqueceu os seus discos, seus livros, seus filmes ou qualquer outra coisa que pudesse lembrar quem era até o dia em que, sem querer, encontrou um álbum com fotografias antigas.

Abriu-o, sentou-se e visitou o seu passado.

Era a primeira de duas filhas nascida de uma união que, aos seus olhos, jamais deveria acontecer. Naqueles tempos em que a subversão ia de encontro ao regime político vigente na forma de versos melodiosos cantados por jovens descontentes e ecos de liberdade vinham de outros lugares do mundo, pensou em fugir de casa. Imprimiu na mente e no coração o forte desejo de livrar-se de seu pai, homem que retornava sempre tarde da noite cheirando a outros perfumes e que a todo domingo extravasava a sua violência desmedida após entornar para dentro de si copos e mais copos de cachaça logo cedo, de manhã. Sua mãe mostrava-se conformada e, às vezes, dava a forte impressão de estar satisfeita com sua triste realidade. Nas noites dos domingos e nas manhãs das segundas-feiras antes do colégio, tratava de cuidar dos hematomas resultantes dos conflitos dos finais de semana e de inventar desculpas para aqueles que vissem os impossíveis de esconder. Os traumas emocionais ficariam para sempre. Não compreendia o motivo daquilo. A família era abastada, possuía bens, sendo sempre a primeira da vizinhança a ter todas as novidades tecnológicas que começaram a surgir mais frequentemente a partir da gestão do governo anterior... Incompreendia as ações de seu genitor tanto quanto incompreendia a passividade de sua mãe diante de toda a violência e humilhação que sofria. Foi uma época difícil, com pouquíssimo tempo para tomar fôlego. Mesmo assim, permitiu-se sonhar, pois era menina. Uma menina linda em todos os aspectos que, ainda tenra, entregou desmedidamente seu coração ao primeiro olhar que lhe foi lançado, de longe, vindo de um rapaz pouco mais velho e muito encantador. Viu então naquele par de olhos verdes a luz que indicava os caminhos da sua felicidade e libertação.

Desfrutou então de dias maravilhosos, quando o tempo das aulas era concedido àquele moço que lhe deu o primeiro olhar, o primeiro toque, o primeiro abraço, o primeiro beijo. Eram as únicas horas da semana em que se sentia feliz. Radiou ainda mais quando ouviu dele os primeiros juramentos. Viria o tempo em que um mundo seria só deles. Debaixo dessas promessas de céus e terra, quando enxovais, móveis e imóveis eram vistos e aprovados pelo casal enquanto colegas e professores sentiam e reprovavam a sua ausência, revelou-se para ele, entregando-se de maneira desmedida ao homem que estava lhe salvando a vida.

Teve a sua primeira vez e seu último dia. Outras ocasiões vieram, cada uma com uma novidade. Depois de um tempo, ele já a adestrava tanto quanto dizia amá-la, mas jamais lhe tirava da cabeça o dia em que todas as promessas feitas seriam cumpridas. Assim levada, a garota desapercebia o seu descuido, já ignorando o fato de tudo poder ser levado ao conhecimento de seu pai, pois a vida no horário das aulas era bem mais aprazível do que no resto do dia. Foi justamente nessa época única até então, quando conseguiu dar total descaso aos perigos que havia em casa e aquela alegria clandestina era parte dela, que parte dela começou a dar sinais de que daquela relação sairia um fruto. Depois de muito tempo, sentiu medo depois de sentir-se mais uma vez enjoada e não sentir mais o sangramento mensal. Também não sentia mais aquilo que chamava de tranqüilidade, ainda quase percebida apenas como uma sensação escapista que tinha ao estar junto daquele que amava.

Resolveu contar-lhe. Sentindo ser urgente a necessidade, saiu alegando ser importantíssimo ir à casa de uma colega para dar os últimos retoques a um trabalho que deveria ser entregue no dia seguinte. Agradeceu a Deus por seu pai demonstrar um raro bom humor naquele dia, respirando aliviada por ele não ter lembrado do boletim que deveria ver e assinar a cada trimestre. Fechou a porta e correu o mais rápido que pôde à casa do seu amado, num dia e horário em que eles nunca se encontraram. Mal notava o chão sob os seus pés, o vento batendo em seu rosto, as pessoas que esbarrava, os olhares de reprovação das mulheres e os de lascívia dos homens daquela cercania, agora mais famintos por pensar no quanto seria fácil conquistar a garota que corria feita louca pela rua que sempre foi indiferente à situação das mulheres que dividiam o teto com um beberrão mulherengo e violento.

Virou a esquina e tentou recuperar-se da tontura resultante da parada repentina. Havia chegado ao local apenas para ver o que jamais pensaria que veria: o moço que dominava o seu coração e os seus pensamentos tinha, em seus lábios, os lábios de outra um pouco mais velha, abraçando-a como se fosse a única coisa disponível para um náufrago num mar de águas furiosas. Negou a acreditar naquilo, mas uma segunda olhada só fez confirmar o que foi visto no instante anterior. Aos poucos e quase aos prantos, formava um quadro completo da situação ainda inacreditável: um caminhão despachava o sofá que eles tinham aprovado semanas antes na casa que haviam admirado dias atrás. Viu ainda os dois amantes encerrarem as carícias por alguns momentos para apreciar toda a situação: outros móveis, todos anteriormente aprovados pela garota, eram despachados do automóvel para o imóvel. Diante daquilo, apenas os seus olhos souberam o que fazer: despejaram lágrimas, então.

Sentou-se na calçada e, sem querer, começou a fazer um balanço dos seus poucos anos de vida, tentando compreender o porquê de um pai ébrio e violento, de uma mãe passiva e de uma parentela indiferente. Repentinamente, veio-lhe à mente a importância de ter dado mais atenção à irmã mentalmente deficiente, de melhorar a freqüência e as notas na escola, de desculpas inúteis que inventaria para justificar à sua família o baixíssimo rendimento que o boletim certamente mostraria, os seus discos quebrados durante um dos acessos de fúria do seu genitor, as explicações que aquele moço certamente teria para toda aquela situação...
Esqueceu o verdadeiro motivo de sua correria desvairada. Sua cabeça estava um caos.

Foi vista por ele, que a encarou por longos instantes antes de despedir-se daquela que o beijava havia poucos momentos, chamando um táxi e colocando-a dentro. Dirigiu-se à calçada e, antes de dizer-lhe algo, ouviu repentinamente a notícia de que a menina achava estar grávida e não saber o que fazer. Após olhar silenciosamente para o vazio, respondeu-lhe secamente que a levaria para um médico amigo seu para ser examinada, mas que, independentemente do resultado, não poderia assumir um filho às vésperas de seu casamento.

Ficou perplexa. Com todas as suas forças, tentou acordar daquilo que repentinamente parecia um pesadelo. As constatações, vindas uma após outra à galope, foram gritadas no ouvido dele: havia aberto mão de tudo o que naquele momento tinha assumido um valor inestimável apenas para ser usada como objeto durante semanas. Pensou que viveria em felicidade eterna ao lado dele, que teriam filhos, que construiriam um lar... Mas entregou-se muito facilmente. Sem querer, talvez, imaginou que ele a libertaria de toda a ansiedade que a proximidade dos finais de semana lhe causava. A partir dali, o único consenso que talvez houvesse entre os dois seria esse. Como se dando as peças de um quebra-cabeça, ele passou a expor calmamente a impossibilidade da vizinhança não saber o que se passava dentro das paredes da casa dela, falando ainda de como se vangloriou por possuir a garota mais abastada e bonita daquele logradouro latino-americano ainda preso a convenções que eram postas em xeque e derrubadas em outros cantos do mundo, o que justificava os olhares que a garota sentia e as piadinhas que ouvia sempre que saía de casa. Falava-lhe essas coisas chamando-lhe a atenção para uma época em que as pessoas faziam questão de manter as aparências, silenciando sobre esses assuntos. Lamentou apenas o fato de ter sido pego em flagrante com a sua noiva, que nada sabia, e sugeriu um aborto se a pior hipótese fosse confirmada pelo seu amigo. Ele levantou-se, deixou a menina calada, entrou num carro e foi embora.

Viu-se sem nada, de repente. Conseguiu voltar para casa.

Nunca mais o veria. Dias depois de pensar que seria impossível esconder a barriga que se formaria, relatou tudo à sua avó que apenas expressou o desejo de que o seu genro espancasse sua neta tão violentamente que perderia a criança. Vendo não poder mais esperar essa providência, levou a menina ao médico que abortou o feto em troca de quantia exorbitante. Em casa, soube que o seu pai teve conhecimento de tudo o que ocorreu. Não iria esperar por ele e fugiu, deixando para trás a mãe, que recusava vir junto, a irmã e a avó. Levou apenas o que achava necessário: algumas roupas e algum dinheiro.

Tinha apenas dezessete anos.

Conseguiu pouso na casa de estranhos em troca de serviços domésticos, agradecendo a Deus todos os dias por não ter sido molestada de forma nenhuma. Mas lamentava-se, pois se via vítima de uma época e de um lugar cuja moral hipócrita maljulgava e marginalizava uma moça sem virtude. Viu perdidas então todas as perspectivas que acreditava não ter antes de conhecer aquele moço. Pegavam-na chorando pelos cantos, às vezes, e a consolavam sem saber os motivos de seus prantos. Conheceu um rapaz humilde, com quase nenhuma instrução. Passou-lhe a dar atenção por imaginar que ele a aceitaria. Sendo ainda bela, ficou certa de que isto bastaria para ele. Tornaram-se amigos e confidentes. Saíram, namoraram e noivaram, uma vez que ignoravam a opinião dos que diziam que, sem dúvida, alguém merecidamente melhor do que ele viria. Casaram e tiveram filhas.

Com o passar dos anos, ia confirmando as opiniões que ouvia antes de casar a respeito do seu cônjuge, que se revelou um homem rude, insensível, mas que jamais fora violento ou deixara de prover o sustento para a família. Um dia, ele confidenciou ter cometido adultério, sendo perdoado após ter tomado tapas, pontapés e berros como nunca. Outros conflitos foram surgindo e se intensificando na medida em que as filhas cresciam e iam adquirindo idéias adversas às do homem que queria que tudo fosse feito do jeito dele, à maneira dele, à hora em que ele quisesse. Tendo de ir contra essas mulheres, que tinham uma das rédeas e metade da outra da casa em suas mãos, ele jamais teria êxito em impor plenamente a sua vontade, nunca conseguiria mandar e desmandar do jeito que bem entendesse sem ser questionado e, às vezes, desafiado.

Não era feliz, apenas conformada, não conseguindo sequer tentar pensar que poderia mudar a sua atual situação.

Fechou o álbum e o guardou. Olhou para o vazio e suspirou. Resolveu convidar as duas filhas para sair assim que elas voltassem da faculdade. Iria falar a elas das outras coisas que sabia.

2 comentários:

  1. Nossa... Inho, muito bom mesmo...
    Viajei em seu conto.... Gostei mesmo.
    Beijosss e Muita Felicidades nessa sua jornada!

    Gisa

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  2. Uau!!!
    Eu tenho um amigo escritor!

    Irei comprar seu livro no dia do lançamento pra vc autografar...

    Beijos e sucesso!

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