quinta-feira, 12 de abril de 2007

Alguém para conversar.


Eu vivia imóvel na estante, entre dois outros mudos. Deveras, não dialogávamos com ninguém. O único conhecimento que tínhamos em comum era o de saber que, depois de irmos para o papel, até acharmos pouso passávamos de mão em mão, éramos embrulhados e empilhados uns sobre os outros. Alguns tinham a sorte de sair logo daquele ambiente claustrofóbico em que nos colocavam. Outros teriam de esperar bem mais para sentir mais uma vez o toque de mãos e o ambiente do local de onde enfim ganhávamos a nossa liberdade e o olhar de satisfação de quem nos levava para casa.

Sabíamos também que fomos criados para conversar, para mostrar maravilhas, para provocar emoções em quem nos acariciava olhando atentamente para nós. Deveríamos ser companheiros de todas as horas, sempre lembrados e citados por quem deslizava seus dedos em nós prestando atenção em tudo o que dizíamos. Pensávamos assim desde que saíamos da gráfica até chegarmos às livrarias ouvindo os anúncios sobre a nossa chegada às mesmas. E logo eu tive a honra máxima de ser o escolhido, dentre os vários exemplares que chegaram comigo, para pertencer ao dono da livraria para a qual fui despachado. Isso significava muito, pois sendo ele dono de uma livraria indicava seu amor pelos livros. Enquanto ele me conduzia à sua casa, eu extasiava só em imaginar o cuidado que ele teria em folhear cada página minha, em olhar atentamente para as palavras estampadas em mim. Seríamos amigos para sempre.

Qual não foi a minha surpresa quando fui entregue a uma criança assim que chegamos à casa do meu dono, o meu novo lar. A surpresa deu lugar a um novo orgulho quando a ouvi agradecendo ao pai pelo presente. Eu, um presente?! E logo para a pessoa de quem ele deveria amar mais do que a tudo neste mundo?! Pensei que voaria quando fui aberto pela primeira vez com cuidado por alguém que com tão pouca idade certamente estaria ansiando me conhecer melhor. Fui levado por ela ao seu quarto, apertado contra o seu peito, aberto mais uma vez e observado de forma mais atenta, mas ainda permanecia calado. Daí, depois de longos instantes, fui colocado na estante de outro cômodo de onde não saí mais. Assistia apenas aos ponteiros do relógio girando quase que imperceptivelmente sem parar com aquele tiquetaquear infernal! Depois de semanas, tudo era banal. Muita gente entrava, as mesmas tantas saíam, o fedor dos charutos insuportável! A menina ia lá de vez em quando e de quando em vez pegar uns livros grossos, levá-los consigo e trazê-los algum tempo depois. Eu vivia me perguntando o que eles deveriam ter, que eu não, assim de tão interessante.

Até aquele dia.

Já tinha percebido que todos os dias, mais ou menos no mesmo horário, a campainha tocava e uma voz estranha trocava algum tipo de informação com a menina sobre um tal livro que ela dizia nunca estar lá. Perguntava-me então se havia mais livros naquela casa, pois todos os que eu conhecia estavam ali: alguns mofando, outros empesteados de traças e teias e ainda outros, como eu, aguardando uma dessas sinas. Foi assim até que eu estranhei o dito de que eu não estava lá. Ouvi perfeitamente, pois o relógio havia parado e a casa estava em silêncio. “Ele não está aqui” era o que aquela balofa dizia a uma menininha que perguntava por mim cotidianamente quase sempre às três da tarde, quando o sol batia mais forte no local onde eu estava alojado. Perversa! Era tão gorda de perversa! Era tão baixa de perversa! Era tão sardenta de perversa me mantendo naquela clausura impedindo que outro fizesse o que ela não fazia e que eu ansiava tanto em fazer: mostrar-me em vôo, conversando com quem quer que tivesse o real interesse em conversar. Sentia o sofrimento daquela criança que ia lá diariamente perguntar se eu estava e obtia uma negação como resposta. Poderia jurar que sentia sua voz enlagrimecida tanto quanto eu me enlagrimecia em letras, acentos e pontos mudos a cada vez que aquele horror me inconcedia à menininha que diariamente pairava à sua porta lhe pedindo a minha concessão.

Naquele dia, então, a senhora da casa interrompeu o diálogo entre as duas meninas. Falas eram seguidas de breve silêncio por parte das três. Daí, a única coisa de que me lembro era de ser pego e entregue a uma menininha loura de olhos que se arregalaram ao me ver. Estava radiante com o simples fato de ter-me em suas mãos. Espantou-se quando a mãe daquela monstrinha disse que poderíamos ficar juntos pelo tempo que a loirinha quisesse. Queria que fosse para sempre, uma vez que observei o quanto era querido por toda a humilhação que ela sofreu por minha causa. Depois de um rápido agradecimento, saímos daquela casa, eu sendo comprimido contra o peito dela, lugar bem melhor de ficar do que entre dois outros livros numa estante empoeirada. Seu coração batia rápido, o sorriso radiando o seu rosto por todo o percurso entre a casa do dono da livraria e o sobrado onde ela residia. Percebi que, a partir dali, eu e a menininha compartilharíamos de uma simbiose. Seríamos confidentes um do outro. Eu lhe mostraria situações e lugares maravilhosos enquanto conversássemos com a plena certeza de que ela relataria suas aventuras comigo às suas pessoas queridas. Ela sentava na rede, eu voava em seu colo. Ela fez com que eu me realizasse de fato. Eu brilhava em seus olhos. Ela era minha amiga, irmã, amante... Mais do que isto. Éramos cúmplices.

Nota: este texto nasceu de uma tarefa solicitada pela Professora Vanilda Salignac, da disciplina Oficina de Leitura e Produção de Textos, da Universidade Federal da Bahia. É baseado no conto “Felicidade Clandestina”, de Clarice Lispector (que pode ser lido aqui: http://intervox.nce.ufrj.br/~valdenit/felicida.htm). Tínhamos de recontar a história sobre um outro ponto de vista.

Eu incorporei o livro.

Um comentário:

  1. É meu amigo Edy... muito bom. Parabéns! Quando é que você vai lançar o seu livro?

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